A miséria elegante das certezas alheias
Há dias em que observo o mundo não com indignação, nem com assombro, mas com uma espécie de cansaço lúcido, semelhante ao que se sente diante de uma peça encenada tantas vezes que mesmo as falhas se tornam previsíveis. E uma dessas cenas repetidas, com trajes novos, mas coreografia antiga, é o desfile das certezas alheias, tão afiadas em sua forma, tão frágeis em sua substância. Há uma miséria, e uma miséria elegante, admito, no modo como muitos transitam pela vida embalados por convicções graníticas, blindadas contra a dúvida, imunes ao nuance, protegidas da complexidade.
Nada parece mais confortável, mais socialmente aceitável, do que sustentar certezas. Elas funcionam como cartões de apresentação nos círculos sociais, como colunas morais em debates, como substitutos de pensamento em arenas digitais. Quem tem certezas, ou ao menos as simula com veemência suficiente, ganha aplauso fácil, autoridade instantânea e, paradoxalmente, a licença para não pensar mais. Há um culto à certeza que opera como religião disfarçada de clareza.
Como descreve a letra da música Dogs da banda Pink Floyd:
"I gotta admit that I'm a little bit confused
Sometimes it seems to me as if I'm just being used
Gotta stay awake, gotta try
And shake of this creeping malaise
If I don't stand my own ground
How can I find my way out of this maze?"
"Tenho que admitir que estou um pouco confuso
Às vezes me parece que estou sendo usado
Preciso ficar acordado, preciso tentar
E sacudir esse crescente mal-estar
Se não firmar meu pé no chão
Como vou conseguir encontrar a saída desse labirinto?"
O dogmatismo social, contudo, raramente se apresenta em trajes religiosos ou filosóficos. Não. Ele vem com roupas modernas, linguagem de autoajuda, slogans de empoderamento, discursos de identidade. Não estou aqui para ridicularizá-los, seria superficial e injusto, mas para advertir que mesmo os discursos aparentemente libertadores podem, e muitas vezes o fazem, tornar-se cárceres conceituais. Uma ideia, quando não aceita como hipótese, mas como dogma, deixa de iluminar e começa a cegar.
Vivi tempo suficiente, ou talvez apenas de forma suficientemente atenta, para perceber que o mundo não é feito de pretos e brancos, mas de cinzas múltiplos e tons que nem nome têm. E é nesses interstícios, nesses espaços onde a certeza hesita, que o pensamento verdadeiramente começa. Sempre desconfiei das pessoas que respondem rápido demais, que não precisam de silêncio para pensar, que não gaguejam ao tocar temas complexos. Essas almas decididas demais parecem-me mais próximas da performance do que da autenticidade.
Aprendi com Montaigne que “o que mais sei é que nada sei”, e mais ainda, que pensar é aprender a recuar, a suspender o juízo, a hospedar o incômodo sem precisar exorcizá-lo com pressa. Mas quem vive cercado de certezas perde essa hospitalidade para com o ambíguo. E há algo de profundamente humano no ambíguo, pois o ser humano não é um algoritmo moral, mas um campo de forças, um drama contínuo entre o que é, o que deseja e o que teme ser.
Por isso, quando vejo as certezas alheias desfilando com elegância nos salões da opinião pública, bem vestidas, assertivas, sorridentes, sinto que há ali não força, mas fraqueza camuflada. A certeza é o escudo de quem não quer mais se ferir com a dúvida. E eu compreendo isso, mas não posso admirá-lo, porque a vida, para ser vivida em profundidade, exige esse risco de se deixar atravessar por perguntas que não se resolvem em uma frase, nem em um rótulo, nem em uma ideologia.
A nuance, ao contrário do que muitos pensam, não é uma indecisão covarde. É um rigor ético, uma honestidade diante da complexidade. É recusar a tentação de se alinhar cegamente a uma ideia só porque ela oferece conforto ou pertencimento. É ter coragem de sustentar zonas de sombra sem recorrer ao binarismo fácil dos que só sabem habitar trincheiras.
Sim, há uma miséria nas certezas alheias. Uma miséria elegante, é verdade, porque bem articulada, instagramável, sedutora em sua suposta clareza. Mas ainda assim, miséria, porque não pensa, não escuta, não se transforma. E o pensamento, se não for transformação, não é pensamento, é pose.
Eu, por minha parte, continuarei vagando entre perguntas. Nem sempre saberei onde estou. Nem sempre saberei o que penso. Mas terei a decência de não simular uma certeza que não tenho, e, sobretudo, a liberdade de mudar, de rever, de hesitar. A nuance, afinal, é o lugar onde a consciência respira.
Oliver Harden
Subscrito
Bonani
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