A Nova Era do “Espelho, Espelho Meu”
A Nova Era do “Espelho, Espelho Meu”
Todas as manhãs, ao acordar, não encaro mais o espelho pendurado no banheiro com a mesma inocência de outrora. Aquela superfície lisa e silenciosa, que outrora devolvia minha imagem com fidelidade quase fotográfica, hoje parece obsoleta diante da avalanche de espelhos portáteis, digitais e emocionais que me cercam. Eles não apenas me refletem, me moldam, me seduzem, me exigem. O velho espelho da madrasta de Branca de Neve virou algoritmo, e a pergunta infantil, “Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?”, foi atualizada para, “Instagram, espelho meu, quantas curtidas valem meu eu?”
A nova era do espelho já não lida com vidro e prata, mas com telas de LED, filtros aveludados, câmeras frontais e métricas de vaidade. E é uma era em que o reflexo deixou de ser passivo, ele responde, retroalimenta, julga. O “espelho” agora tem opinião, e, o que é mais grave, essa opinião não é a nossa. Ela é do outro, da massa difusa, anônima e inquieta que desliza o dedo por nossas existências digitais com o poder de uma realeza pós-moderna. Nossa imagem, hoje, é escrava da expectativa alheia.
E eu, que me criei entre livros, silêncio e olhares que demoravam a se formar, me vejo às vezes enredado nesse teatro de reflexos onde todos se olham para serem olhados. Não há mais “ser” sem o “parecer”, e o narcisismo deixou de ser patologia para tornar-se protocolo social. Pede-se, com urgência estética, que todos sejam ao mesmo tempo protagonistas e plateia de si mesmos, uma coreografia coreografada para nenhuma plateia fixa, mas com a esperança de aplausos.
As pessoas já não vivem suas experiências, as registram. Não celebram a paisagem, a postam. Não saboreiam o instante, o editam. E tudo isso é submetido ao novo espelho, onipresente e implacável, que já não pergunta se somos belos, mas se somos visíveis, clicáveis, desejáveis. A beleza em si perdeu sua substância ontológica para se tornar performance, e a imagem, que deveria ser reflexo, tornou-se imposição.
Não se trata mais da vaidade simples, essa vaidade clássica que é inerente à condição humana. Trata-se de uma compulsão por confirmação, de um narcisismo terceirizado, dependente do aplauso do outro para saber se ainda se é alguém. A nova era do espelho nos desconectou do espanto filosófico de “quem sou eu?”, substituindo-o por uma pergunta patética, “o que acham de mim hoje?”
E, no entanto, o mais trágico talvez seja o silêncio do espelho autêntico. Aquele espelho antigo, interior, que refletia nossas contradições sem recompensa. O espelho do pensamento, da consciência, do exame moral. Esse foi emudecido. Deixamos de perguntar a nós mesmos o que nos tornamos, porque estamos ocupados demais perguntando aos outros o que devemos ser. A superficialidade, com seu verniz cintilante, triunfa enquanto a profundidade é exilada por não ser instagramável.
Sinto, por vezes, um impulso meio anacrônico, talvez ridículo, de desligar todos os espelhos digitais e ouvir, de novo, a voz interior que um dia me interrogava com brutalidade, “És verdadeiro no que sentes, ou apenas repetes o que o mundo aplaude?” Essa voz, sim, é o único espelho que ainda merece confiança.
Mas sei que o feitiço é poderoso, e que a madrasta, embora moderna, continua entre nós, disfarçada de engajamento, relevância e presença virtual. O veneno já não vem em maçãs, vem em filtros. E talvez só possamos quebrar o encantamento ao nos olharmos, enfim, em um espelho que não nos minta, mesmo que ele nos diga algo que não queremos ouvir. Porque, ao contrário do que nos prometeram, a verdade ainda é a única forma de beleza que resiste ao tempo.
Subscrito
Bonani
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