"Agnotologia"
Durante muito tempo, a gente aprendeu que ignorância era só falta de informação. Que bastava ensinar melhor, divulgar mais, explicar com paciência. Esse raciocínio parte de uma ideia confortável: a de que todo mundo erra sem querer. Até que alguém resolveu olhar para o problema por outro ângulo e perguntar o que acontece quando a ignorância não é um acidente, mas um projeto.
Foi aí que conheci o trabalho de Robert Proctor, historiador da ciência, professor em Stanford, e o homem que deu nome a esse mecanismo desconfortável chamado agnotologia. Agnotologia é o estudo da produção deliberada da ignorância. Não do erro honesto. Não da dúvida legítima. Mas da ignorância construída com método, dinheiro, estratégia e paciência histórica.
Proctor chegou a isso estudando a indústria do tabaco. E aqui vale ser bem didático. Nos anos 1950, a ciência já havia identificado com clareza a relação entre cigarro e câncer de pulmão. O consenso estava se formando. O que a indústria fez não foi negar frontalmente esses estudos. Isso seria fácil de desmontar. O que ela fez foi algo muito mais sofisticado.
Ela financiou pesquisas paralelas, pagou especialistas para relativizar conclusões, criou institutos “independentes” e passou a repetir uma frase-chave: “a ciência ainda não é conclusiva”. Não era mentira direta. Era fabricação de dúvida. O objetivo não era convencer as pessoas de que fumar fazia bem. Era fazer com que elas pensassem que ainda era cedo demais para ter certeza.
Aqui está o ponto central da agnotologia: não se trata de convencer, mas de paralisar. Se existe dúvida, não há urgência. Se há controvérsia, não há decisão. Se tudo parece incerto, ninguém precisa agir agora.
Esse método deu tão certo que passou a ser reutilizado. Mudam os temas, mas a engrenagem é a mesma. Mudanças climáticas, por exemplo. Durante décadas, empresas financiaram campanhas não para negar o aquecimento global, mas para transformá-lo em “debate”. O planeta aquecia, os dados se acumulavam, mas a pergunta pública permanecia sempre a mesma: “Será mesmo?”
Vacinas seguiram caminho parecido. Não foi preciso provar que elas não funcionam. Bastou sugerir que talvez não fossem tão seguras assim, que talvez ainda houvesse algo escondido, que talvez fosse melhor esperar. A dúvida virou produto. A hesitação virou comportamento social.
História também entra nessa conta. Quando tudo vira “versão”, quando fatos documentados passam a disputar espaço com opinião, quando arquivos viram narrativa opcional, a ignorância deixa de ser ausência e passa a ser política. Não é esquecimento. É escolha.
A agnotologia não nasceu na filosofia, mas dialoga diretamente com ideias que muita gente já sentiu na pele sem saber nomear. Michel Foucault já havia mostrado como saber e poder caminham juntos, como certos discursos ganham status de verdade enquanto outros são empurrados para a margem. Proctor mostra o outro lado da moeda: não apenas o que é dito, mas o que é sistematicamente impedido de ser sabido.
Décadas depois, pesquisadores como Naomi Oreskes deixaram isso ainda mais explícito ao analisar como a dúvida científica foi usada como arma política no debate climático. Não se vence a verdade com mentira escancarada. Vence-se desgastando-a, cercando-a de ruído, colocando-a no mesmo nível de qualquer palpite. Quando tudo vira opinião, a verdade deixa de ter urgência.
Esse mecanismo fica ainda mais eficiente quando encontra um terreno fértil chamado dissonância cognitiva. Um conceito da psicologia formulado por Leon Festinger, que explica algo simples e profundamente humano. A gente não gosta de informações que nos obrigam a rever quem somos, no que acreditamos ou ao grupo ao qual pertencemos. Quando uma informação ameaça nossa identidade, o cérebro não reage buscando verdade. Ele reage buscando alívio.
E a dúvida fabricada oferece exatamente isso. Ela não exige mudança. Não cobra revisão. Não pede desconforto. Ela apenas sussurra: “calma, talvez não seja bem assim”. A agnotologia não precisa criar essa tensão. Ela só precisa explorá-la.
As redes sociais transformaram esse processo em escala industrial. Algoritmos aprenderam a entregar conforto cognitivo com precisão assustadora. Se você acredita em algo, sempre haverá um conteúdo dizendo que você tem razão em duvidar do resto. Nesse ambiente, a ignorância não precisa ser imposta. Ela passa a ser escolhida.
Eu faço questão de falar disso aqui porque entender esse mecanismo é uma forma de defesa. Não contra pessoas, não contra ideias específicas, mas contra estruturas invisíveis que moldam o debate público. A melhor forma de se prevenir é entender o mecanismo. A agnotologia não te transforma automaticamente em alguém mais informado ou mais inteligente. Ela te transforma em alguém mais atento. E atenção, hoje, é um ato quase subversivo.
Talvez você nunca tenha ouvido essa palavra antes. E tudo bem. Ela não costuma circular fora da academia justamente porque nomear o problema é o primeiro passo para desmontá-lo. Mas o efeito dela está por toda parte. Nos debates que nunca avançam. Nas discussões que se repetem em círculos. Na sensação constante de que algo está errado, mas nunca errado o suficiente para exigir mudança imediata.
Quando identidade vira trincheira, qualquer dúvida que proteja essa identidade parece virtude. É assim que a guerra cultural se alimenta. Não pela força da verdade, mas pelo conforto da hesitação. Em certos momentos da história, não é a mentira que vence. É a dúvida bem administrada.
E é exatamente por isso que escrever este texto me dá um tipo específico de orgulho. Não aquele orgulho inflado, performático, mas um orgulho quieto, quase teimoso. O de continuar falando de coisas difíceis num tempo em que o fácil viraliza mais rápido. O de explicar um conceito pouco conhecido quando o mundo parece preferir gritar certezas rasas.
Com tudo o que tem acontecido comigo, com o debate público e com o próprio planeta, sentar para escrever sobre isso é, para mim, uma forma de resistência lúcida. E também um gesto de confiança em quem ainda lê com atenção. Se isso aqui servir como munição para quem pensa criticamente, mesmo que só para reconhecer a engrenagem, já valeu.
Subscrito
Bonani

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