Lucidez e Autocrueldade

 



"Sede sóbrio e vigiai..." 1 Pedro 5:8(Bíblia)


Entre a luz que esclarece e a lâmina que fere: lucidez e autocrueldade


Há uma linha sutil, quase invisível, que separa a lucidez da autocrueldade. Ambas nascem do mesmo gesto inaugural, o voltar-se para dentro, o desejo de compreender-se. No entanto, o destino desse gesto é radicalmente distinto. O que em um caso se converte em clarificação e maturidade, no outro degenera em punição silenciosa.


A lucidez é um olhar que não se esquiva da verdade, mas também não a absolutiza contra a vida. Ela reconhece a falha sem transformá-la em essência, identifica o erro sem confundi-lo com identidade. Psicologicamente, a lucidez opera como integração, ela reúne o que foi fragmentado, suporta a ambiguidade e tolera a imperfeição sem a necessidade imediata de condenação. Trata-se de um saber que amadurece o sujeito, pois amplia sua responsabilidade sem esmagar sua vitalidade.


A autocrueldade, por sua vez, surge quando a consciência se hipertrofia e perde sua função reguladora. O pensamento deixa de ser instrumento de compreensão e passa a funcionar como mecanismo de vigilância punitiva. O indivíduo observa a si mesmo não para transformar-se, mas para acusar-se. Cada lembrança é reaberta como prova, cada contradição é explorada como falência moral. Aqui, a inteligência já não serve ao crescimento, serve à dor. O sujeito torna-se carcereiro de si mesmo.


Do ponto de vista psicológico, a autocrueldade frequentemente se disfarça de honestidade radical. O indivíduo acredita estar sendo profundo, rigoroso, lúcido, quando na verdade está reproduzindo internamente uma lógica de punição que muitas vezes teve origem no olhar do outro, na exigência excessiva, na crítica internalizada. A consciência, então, deixa de ser espaço de escuta e se converte em tribunal. Não há perdão, apenas sentença.


Enquanto a lucidez abre possibilidades, a autocrueldade as fecha. A primeira pergunta “o que posso aprender com isso?”, a segunda afirma “isso prova que não há saída”. A lucidez admite o sofrimento como parte do processo humano, mas não se apega a ele como identidade. A autocrueldade, ao contrário, faz da dor um eixo estruturante, porque sem ela o sujeito teme perder o único lugar onde sente controle ou sentido.


É nesse ponto que Dostoiévski, Freud e, mais tarde, Nietzsche se encontram, ainda que por caminhos distintos. Todos intuem que o excesso de consciência, quando não mediado por compaixão, transforma-se em doença. A lucidez sem misericórdia torna-se destrutiva. Pensar demais, quando pensar significa apenas julgar, não eleva, corrói.


A distinção fundamental, portanto, não está na intensidade do pensamento, mas na direção ética do olhar interior. A lucidez pergunta para seguir adiante. A autocrueldade interroga para permanecer presa. Uma busca sentido. A outra busca punição. Uma sustenta a vida mesmo quando dói. A outra prefere a dor à incerteza de mudar.


Ser lúcido é suportar-se sem complacência, mas também sem sadismo. É aceitar que compreender não implica flagelar, e que crescer exige, paradoxalmente, um certo grau de benevolência consigo. Quando o pensamento já não permite recomeço, quando toda reflexão termina em condenação, já não estamos diante da lucidez, mas de uma forma refinada de violência interior.


Talvez a maturidade psicológica consista justamente em aprender a interromper o interrogatório, em saber quando o pensamento deve calar para que o ser possa, enfim, respirar.


Oliver Harden

Subscrito 

Bonani

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"IGREJA.PALMEIRA E O EXEMPLO DE DÉBORA!"

δύναμις e ἐξουσία em Atos 1:8 (leia para entender)

AMIZADE: “PURÁ É A PURA!”