Senhor dos Anéis versus Branca de Neve(Uma Oposição Filosófica)
A antipatia de J.R.R. Tolkien por Disney não era uma crítica casual de um velho acadêmico resistente às novas mídias. Não era inveja profissional nem tradicionalismo automático. Era uma oposição filosófica profunda, enraizada em compreensões radicalmente diferentes sobre para que servem as histórias e o que acontece quando elas são alteradas.
O conflito começou com uma coincidência quase inquietante, em 1937.
Naquele ano, Tolkien publicou O Hobbit, um livro infantil aparentemente simples, mas que na verdade era uma mitologia cuidadosamente construída, moldada por sua formação em linguística, sua imersão na literatura antiga e suas convicções sobre como as histórias carregam peso moral e espiritual. Ele havia passado anos criando não apenas uma trama, mas um mundo inteiro — com línguas, histórias e culturas — que conferiam à narrativa uma profundidade muito além de sua superfície aventureira.
Poucos meses depois do lançamento de O Hobbit nas livrarias britânicas, a Disney estreou Branca de Neve e os Sete Anões, em 21 de dezembro de 1937. Foi o primeiro longa-metragem de animação da história — um feito técnico, uma aposta comercial e um fenômeno cultural imediato. Quando chegou aos cinemas britânicos no início de 1938, representava tudo o que o entretenimento moderno podia alcançar: apelo de massa, inovação tecnológica e sucesso financeiro em escala inédita.
O momento não foi apenas coincidência. Ele colocou diante do público, ao mesmo tempo, duas visões radicalmente diferentes dos contos de fadas. Uma era a tentativa de um professor de Oxford de criar uma nova mitologia a partir de tradições narrativas antigas. A outra era o esforço de um estúdio de Hollywood para transformar velhos contos em algo capaz de lotar salas de cinema.
Tolkien e seu amigo próximo, C.S. Lewis, foram assistir a Branca de Neve juntos — provavelmente movidos pela curiosidade diante daquele filme revolucionário de que todos falavam. Ambos eram estudiosos da literatura medieval, profundamente comprometidos com contos de fadas e mitologia, e levavam histórias a sério como portadoras de verdade e significado, não como mero entretenimento.
Nenhum dos dois ficou impressionado.
Lewis registrou em seu diário que achou o filme “enjoativo”. A reação de Tolkien foi mais profunda — e durou por toda a sua vida. O que ele viu na tela o perturbou de maneiras que moldariam sua visão sobre adaptações e cultura popular dali em diante.
O incômodo não era técnico. Tolkien reconheceu imediatamente o talento da Disney — a animação era inédita, a arte inegável, o feito extraordinário. O que o incomodava era a intenção, a filosofia, o que Disney acreditava que os contos de fadas deveriam ser.
Para Tolkien, como explicou cuidadosamente em seu ensaio Sobre Histórias de Fadas e em muitas de suas cartas, contos de fadas não eram entretenimento decorativo para crianças. Eram ferramentas antigas com propósitos sérios: confrontar o medo, explorar a perda, reconhecer o perigo e trabalhar as consequências morais por meio do símbolo. Eram mito — narrativas que carregavam verdades sobre a condição humana de formas que a ficção realista não conseguia.
Os contos genuínos, acreditava Tolkien, mantinham uma qualidade que ele chamou de “eucatástrofe” — uma virada súbita e jubilosa que parece milagrosa justamente porque a escuridão anterior era real e terrível. O final feliz só tem significado se o perigo, o medo e a possibilidade real de fracasso estiveram presentes. Isso não pode ser fabricado apenas com sentimentalismo.
A abordagem da Disney, aos olhos de Tolkien, transformava essas narrativas perigosas e moralmente complexas em algo fundamentalmente diferente. Os elementos antigos permaneciam — anões, rainhas malignas, florestas encantadas — mas eram remodelados em sentimentalismo, humor e espetáculo, pensados para consumo universal e sucesso comercial.
A rainha má de Branca de Neve era claramente má, totalmente derrotada e sem ambiguidade moral. Os anões tornavam-se alívio cômico, com personalidades facilmente exploráveis em produtos. A escuridão surgia, mas sempre controlada, sempre resolvida com facilidade, sempre subordinada à mensagem tranquilizadora de que tudo ficaria bem. As arestas haviam sido lixadas.
Para Tolkien, isso era uma forma de corrupção. Não por malícia deliberada, mas por transformar algo criado para um fim específico em outra coisa, mantendo apenas a aparência externa. Como traduzir poesia em prosa: as palavras podem estar corretas, mas a essência que fazia aquilo ser poesia se perde.
Em uma carta de 1964 a um produtor interessado em adaptar sua obra, Tolkien foi direto. Disse que sentia uma “aversão profunda” pelo trabalho da Disney, acreditando que seu talento — que ele reconhecia — parecia “irremediavelmente corrompido”. Qualquer história tocada por Disney, temia Tolkien, corria o risco de ser achatada: moral, porém rasa; visualmente rica, mas espiritualmente vazia.
Isso não era animosidade pessoal. Tolkien nunca conheceu Walt Disney. Não comentava sobre seu caráter. Sua oposição era inteiramente filosófica — um desacordo sobre o que são as histórias, o que elas devem fazer e o que acontece quando são alteradas para alcançar públicos maiores.
O desacordo central era este: Disney acreditava que histórias atingem seu propósito máximo quando são simplificadas para o público de massa. Situações morais complexas tornam-se bem contra mal. Personagens ambíguos tornam-se heróis ou vilões. O perigo torna-se administrável, a escuridão controlável, os finais inequivocamente felizes. Para Disney, isso era democratizante — levar contos de fadas a milhões que jamais leriam os originais.
Tolkien acreditava que as histórias ganham força justamente ao preservar suas sombras, complexidades e perigos. A ambiguidade moral de Gollum, o perigo real da toca de Laracna, personagens capazes de coragem e mesquinhez ao mesmo tempo — esses elementos não eram obstáculos à compreensão. Eram o ponto central. Tornavam as histórias verdadeiras à experiência humana e capazes de transmitir significado real.
Uma visão buscava modernizar o mito, torná-lo acessível e palatável. A outra buscava proteger o mito da modernidade, preservando aquilo que o tornava mitológico, e não apenas entretenimento.
Isso não era nostalgia ingênua. Tolkien sabia que histórias sempre mudam ao serem recontadas. Mas distinguia mudanças orgânicas, feitas por narradores genuinamente envolvidos com o material, de mudanças impostas por imperativos comerciais e exigências do mercado de massa.
Para ele, as alterações da Disney pertenciam claramente à segunda categoria.
Essa convicção moldou profundamente a resistência de Tolkien a adaptações cinematográficas ao longo da vida. Ele foi abordado várias vezes para adaptar O Senhor dos Anéis e sempre resistiu — em parte porque temia, com razão, que sua obra fosse “disneyficada”.
Ele imaginava Sam como alívio cômico, Gollum como vilão simples, personagens como Boromir ou Denethor reduzidos a categorias claras, Mordor suavizada para públicos familiares, e momentos de eucatástrofe fabricados por sentimentalismo em vez de conquistados por perigo real.
Esses medos não eram paranoicos. Baseavam-se na prática comum de Hollywood e no que Disney fizera com os contos tradicionais.
Para Tolkien, melhor poucos leitores encontrando a coisa verdadeira do que milhões consumindo um substituto comercializado.
A questão que ele levantou permanece atual:
Quando histórias são adaptadas para consumo de massa, o que se perde?
Quando a complexidade moral é simplificada e a escuridão domada, ainda temos o mesmo mito — ou apenas algo que se parece com ele?
Tolkien passou a vida inteira defendendo que se torna outra coisa.
E tudo começou, curiosamente, com dois homens saindo de um cinema em 1938, perturbados não pelo fracasso de Branca de Neve, mas por seu enorme sucesso em fazer algo que nenhum dos dois acreditava que contos de fadas deveriam fazer.
Subscrito
Bonani

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