SOMBRAS OU REALIDADES - "TRÊS TEXTOS SOBRE A LEI E A GRAÇA ”



O primeiro texto a seguir é longo mas essencial para quem quer entender questões sobre a Graça de Deus! 
O texto que se segue   se encontra na Carta de Paulo aos Colossenses.
A capacidade se síntese paulina é notória, pois, para qualquer  leitor minimamente, ou não,  estruturado em qualquer dogma teológico,  perceberá que Paulo, tanto  anula  qualquer justificação e intermediação salvífica  reclamadas, quer seja no aspecto orgânico ou judicial, tanto na lei mosaica como  outra  expressão de cunho místico ou esotérico como era o caso do gnosticismo   que começava  sutilmente penetrar no seio da igreja.
Paulo aqui traz absoluta  luz   sobre a questão  da obra única e exclusiva da redenção em Cristo!
Faça uma leitura  despido  totalmente de qualquer estrutura dogmática no texto abaixo e tire suas conclusões!

Porque quero  que saibais quão grande combate tenho por vós, e pelos que estão em Laodicéia, e por quantos não viram o meu rosto em carne;
Para que os seus corações sejam consolados, e estejam unidos em amor, e enriquecidos da plenitude da inteligência, para conhecimento do mistério de Deus e Pai, e de Cristo,
Em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.
E digo isto, para que ninguém vos engane com palavras persuasivas.
Porque, ainda que esteja ausente quanto ao corpo, contudo, em espírito estou convosco, regozijando-me e vendo a vossa ordem e a firmeza da vossa fé em Cristo.
Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai nele,
Arraigados e edificados nele, e confirmados na fé, assim como fostes ensinados, nela abundando em ação de graças.
Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo;
Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade;
E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o principado e potestade;
No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, a circuncisão de Cristo;
Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos.
E, quando vós estáveis mortos nos pecados, e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as ofensas,
Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz.
E, despojando os principados e potestades, os expôs publicamente e deles triunfou em si mesmo.
Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados,
Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo.
Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão,
E não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus.
Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como:
Não toques, não proves, não manuseies?
As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens;
As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne. 
Colossenses 2:1-23
No segundo texto de Paulo na carta aos Romanos  o apóstolo inicia generalizando Israel e sua  incapacidade  de ser salvo pelas obras da Lei de Moisés  expressando seu desejo em forma de intensa oração pela salvação deles deixando bem claro o “contraste entre o zelo pela Lei e a falta de entendimento da obra graciosa de Cristo na Cruz, onde se sepulta o fim da lei e que em Cristo a justiça se estabelece de uma vez por todas pela fé!
Aconselho também, nesse segundo texto, uma leitura aos moldes da minha primeira recomendação! Vamos a ele então:

Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para sua salvação.
Porque lhes dou testemunho de que têm zelo de Deus, mas não com entendimento.
Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus.
Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê.
Ora Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas.
Mas a justiça que é pela fé diz assim: Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a Cristo.)
Ou: Quem descerá ao abismo? (isto é, a tornar a trazer dentre os mortos a Cristo.)
Mas que diz? A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos,
A saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.
Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação.
Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido.
Porquanto não há diferença entre judeu e grego; porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam.
Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? e como crerão naquele de quem não ouviram? e como ouvirão, se não há quem pregue?
E como pregarão, se não forem enviados? como está escrito: Quão formosos os pés dos que anunciam o evangelho de paz; dos que trazem alegres novas de boas coisas.
Mas nem todos têm obedecido ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu na nossa pregação?
De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus.
Mas digo: Porventura não ouviram? Sim, por certo, pois Por toda a terra saiu a voz deles, E as suas palavras até aos confins do mundo.
Mas digo: Porventura Israel não o soube? Primeiramente diz Moisés: Eu vos porei em ciúmes com aqueles que não são povo, Com gente insensata vos provocarei à ira.
E Isaías ousadamente diz: Fui achado pelos que não me buscavam, Fui manifestado aos que por mim não perguntavam.
Mas para Israel diz: Todo o dia estendi as minhas mãos a um povo rebelde e contradizente. 
Romanos 10:1-21

No terceiro texto faço uso de uma lúcida exposição sobre a mesma questão, agora desenvolvida na Carta de Paulo ao Gálatas que é da autoria de um calvinista: Augustus Nicodemus Lopes que é deveras esclarecedor e fecha com chave de ouro o assunto proposto. Ei-lo; …boa leitura!
Desde o seu início, o cristianismo debate-se com uma questão crucial: qual é exatamente a posição da lei de Moisés dentro da nova dispensação da graça? Não se trata de uma discussão teológica sem valor prático. Várias alternativas práticas dependem das respostas. É possível explicar as ênfases éticas e práticas dos calvinistas e dos luteranos a partir da abordagem de Calvino e de Lutero sobre a validade da lei para os cristãos
O debate tem se concentrado historicamente nas cartas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas, e mais recentemente na expressão “obras da lei”, que ocorre oito vezes nessas cartas: duas vezes em Romanos (3.20,28) e seis vezes em Gálatas (2.16,3 vezes; 3.2, 5; 3.10) ontem todas essas ocorrências, a expressão ocupa posição central no contexto, usada com uma conotação negativa. Paulo emprega-a cinco vezes para negar que a justificação pode ser obtida por intermédio da lei (Rm 3.20, 28; Gl 2.16) . A expressão também é usada negativamente para se referia aos que estão debaixo da maldição da lei (Gl 3.10). Não é de admirar, portanto, que dentro da interpretação tradicional as “obras da lei“ venham sendo encaradas de forma negativa e entendidas como parte da polêmica de Paulo contra o sistema judaico de salvação por obras e méritos humanos. Ele teria em mente os atos de obediência à o lei de Moisés realizados pelos judeus da sua época com a intenção de obter méritos diante de Deus. Paulo os rejeita, em primeiro lugar, porque nunca foi propósito de Deus que a lei servisse de caminho de salvação, e em segundo lugar, porque o homem é totalmente corrompido e fraco, devido ao pecado, e, portanto, incapaz de cumprir as exigências da lei. Assim, para Paulo, ninguém pode se justificar pelas “obras da lei” simplesmente porque ninguém é capaz de fazer tudo o que a lei exige.
Essa interpretação, que por muito tempo dominou a área de estudos paulinos, começou a ser contestada recentemente de forma séria por vários estudiosos. Depois dos artigos de Krister Stendhal e Werner Kümmel, a obra que possivelmente mais tem contribuído para uma mudança de perspectiva sobre judaísmo e Paulo é o livro de E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism. Partindo de suas pesquisas exaustivas em material rabínico, Sanders argumenta que o judaísmo da Palestina na época de Jesus e Paulo não era uma religião legalista, preocupada em acumular méritos diante de Deus; antes, era uma religião baseada na graça de Deus revelada nas alianças com Israel, especialmente no Sinai. Portanto, longe de ser legalista, que o fariseu da época de Jesus e de Paulo já se considerava, por nascimento, dentro da graça da aliança. Sanders, então, conclui que o padrão religioso do judaísmo palestino não era “Legalismo”, mas “Nomismo Pactual”. Partindo dessas premissas, Sanders conclui que o assunto em discussão em Gálatas “Não esse pessoas podem acumular méritos suficientes para ser absolvidas no juízo; antes, o que se discute é a base sobre a qual os gentios podem ser incluídos no povo de Deus”.
O trabalho de Stendhal e Sanders, entre outros, têm influenciado de forma decisiva debate atual da perspectiva de Paulo sobre a lei. Percebe-se uma mudança na abordagem de vários estudiosos na direção de uma percepção mais positiva e menos crítica do judaísmo, dos judeus e da lei. Como conseqüência, Paulo tem sido visto de forma negativa, como detentor de uma perspectiva distorcida da religião dos seus pais, ou mesmo como mal-intencionado em sua maneira de caricaturar de condenar o judaísmo. E o que é ainda mais sério, a polêmica de Paulo contra as “obras da lei” é lançada no vácuo, já que, segundo a “nova perspectiva”, ninguém no primeiro século estava dizendo que a salvação era por obras – muito menos os judeus. Como explicar, então, o ataque consistente de Paulo contra as “obras da lei”, especialmente em Gálatas? Segundo os exegetas da “nova perspectiva”, ou Paulo entendeu mal o judaísmo da sua (Schoeps), ou então não estamos entendendo bem Paulo (Sanders, Stendhal); ele realmente nunca foi contra as “obras da lei” como um caminho falso de salvação, como Lutero e outros reformadores disseram, e suas críticas à lei, às “obras da lei”, e ao judaísmo precisam ser interpretadas de maneira diferente da tradicional.
Entre as novas interpretações que surgiram, a abordagem sociológica de James Dunn tem recebido vasta aceitação. Para ele, Paulo ataca as ”obras da lei” não porque elas expressam o desejo de alcançar mérito por parte dos judeus – mas porque entende que elas fazem distinção entre judeus, o povo de Deus da antiga dispensação, e os gentios, a quem o evangelho está sendo oferecido. As “obras da lei” que Paulo identifica como restritas à circuncisão , às leis sobre alimentos puros e impuros e os dias especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatiza a separação entre judeus e não-judeus, a qual Cristo veio abolir.
A carta chave de todo esse debate é Gálatas, e é nela que veremos se a tese de Dunn pode ser substanciada exegeticamente. Na discussão que se segue, estaremos preocupados apenas com a questão: Por qual motivo Paulo rejeita as “obras da lei”? É porque elas fazem parte do sistema legalista do judaísmo da sua época, sendo incompatíveis com a salvação pela graça, mediante a fé em Cristo (interpretação tradicional)? Ou simplesmente porque fazem distinção entre judeus e gentios (nesse caso, interpretação tradicional estaria precisando de revisão)?
O significado de “obras da lei” em Gálatas está essencialmente ligado algumas questões introdutórias sobre a carta, especialmente o propósito dos oponentes de Paulo na Galácia. Segundo Paulo, pregavam “outro evangelho” com a intenção de “perverter o evangelho de Cristo” (1.6-7). Aparentemente, estes pregadores estavam mimando a autoridade Paulo como apóstolo, com o objetivo de resgatar os gálatas de debaixo de sua influência e assim ganhar-lhes a atenção (4.17).
A identidade desses oponentes de Paulo tem sido bastante debatida. Aparentemente eles pertenciam à facção farisaica da igreja de Jerusalém, conhecida como “os da circuncisão” devido ao seu ensino enfático sobre a necessidade da circuncisão para a salvação dos gentios (At 11.3; 15.1-5; Gl 2.1-5,11-13; 6.12-13). A julgar pelo que Paulo menciona, eles já haviam obtido algum sucesso (1.6), pois alguns dos gálatas já estavam guardando os dias santos do calendário judaico (4.9) e outros estavam prestes a se deixar circuncidar (5.2-3). Em resumo, eles estavam o abandonando o evangelho pregado por Paulo e adotando um tipo de religião judaico-cristã com fortes tendências legalistas, que requeria as “obras da lei” em acréscimo à fé em Cristo (2.16; 3.10; 4.8-11; 5.2-3).

Alguns estudiosos têm sugerido que, exigindo essas coisas, os “judaizantes“ estavam no tratando apenas da questão de “Como se tornar um herdeiro completo de Abraão” (3.29; 4.1-7,30) o mesmo propondo um caminho mais excelente de perfeição cristã (3.1-5). Dunn tem mesmo avançado a hipótese que, de acordo com 2.15-16a, o judaísmo do primeiro século sabia que a salvação era pela fé e não por obras da lei e, portanto, o que estava em jogo na Galácia não era a justificação. Entretanto, transparece da carta aos Gálatas que, para Paulo, o que estava prestes a ocorrer com os destinatários era uma questão de vida ou morte. Se eles se submetessem às exigências daqueles pregadores, estariam abandonando o verdadeiro evangelho, renegando a graça de Deus, anulando a obra de Cristo, colocando-se debaixo da maldição da lei e decaindo da graça. Pouca dúvida resta de que, para o apóstolo, o que estava sendo ameaçado era o próprio conceito de justificação. É este o assunto que o preocupa, mesmo quando aborda a questão da herança de Abraão, incluindo a promessa do Espírito (3.6-9,29; 3.26 com 4.5-7; 3.4; 3.1-2 com 4.6; Ef 1.13).
Esse ponto torna-se ainda mais claro quando observamos em que sentido Paulo usa a palavra “Lei” em sua argumentação contra a mensagem dos seus oponentes. Na maioria das 30 vezes em que ele a usa em Gálatas, ele se refere à lei de Moisés e, dessas, 16 vezes a referência é claramente à lei de Moisés como um todo (2.6,19,21; 3. 2,5, 10,13,17-19; 4.21a; 5.3-4,18; 6.13), quatro vezes à administração sinaítica do Antigo Testamento (3.23-25; 4.4; 5.14). É seguro concluir que Paulo usa “lei” em Gálatas principalmente para referir-se ao corpo de regulamentos dados por Deus à Israel mediante o Moisés no Sinai, e como tal é elaborada pelo apóstolo nessa carta, não em sua função social e nacional como emblema do judaísmo, mas como o conjunto de requerimentos legais de Deus sobre os judeus, os quais seus oponentes queriam impor aos gentios. Notemos que Paulo menciona a lei apenas no que se refere à relação do homem com Deus (teológica), não quanto à identidade nacional de um povo (sociológica). Assim, é evidente pela forma como Paulo usam “nômos” que a expressão “obras da lei” refere-se às obras realizadas em obediência à lei com propósito salvífico.
É possível que Dunn esteja certo ao afirmar que Paulo, em Gálatas 2.16, tem em mente apenas os preceitos da lei enfatizados pelos seus oponentes, não a lei como um todo. O que estaria em discussão era principalmente a circuncisão (2.3) e as leis cerimoniais de alimentos puros e impuros (2.12). Dunn observa corretamente, em minha opinião, que estes dois preceitos da lei, juntamente com a observância dos dias especiais do calendário judaico (principalmente o sábado), eram as principais características do judaísmo do período do segundo templo, os “Emblemas” da religião judaica. Em outras palavras, se perguntassem à qualquer pessoa do primeiro século o que era um judeu, a resposta provavelmente incluiria a menção de todos ou de alguns desses elementos. Não é de admirar, portanto, que os adversários de Paulo estavam insistindo nesses pontos, em sua catequese dos crentes gentílicos da Galácia.
Embora essa sugestão de Dunn seja atraente, é mais provável que Paulo esteja usando a expressão “obras da lei” um sentido mais amplo em 2.16, como uma conclusão generalizada. Longenecker, que prefere essa possibilidade, acha que Paulo usa “obras da lei” para sinalizar “todo o complexo legalista de idéias relacionadas com o adquirir do favor divino pelo acúmulo de méritos mediante observância da Torá.

Essa interpretação mais ampla de “obras da lei” em 2.16 é confirmada em 3.10: “Todos quantos são das obras da lei estão debaixo de maldição, porque está escrito: ‘Maldito todo o que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei para fazê-las’”. Ser das “obras da lei” implica cumprir toda a lei – e isto representa mais que os mandamentos sobre circuncisão, alimentos e dias santos.
Algumas versões na língua inglesa introduziram em 3.10 a expressão “confiam” antes de “obras da lei” (“malditos que confiam nas obras da lei”), refletindo o sentido óbvio do pensamento de Paulo (NVI, RSV; veja também Philips). Mas nem todos estão satisfeitos com essa interpretação. Dunn, de forma característica, entende que os que são das “obras da lei” não são necessariamente os legalistas, mas “todos os que restringem a graça e a promessa de Deus sob aspectos nacionalistas”. Outros, como Braswell, tomam a expressão num sentido bem mais amplo, referindo-se aos judeus em geral, desde que, para Paulo, eles eram o único povo debaixo da lei de Moisés. Esta idéia, entretanto, minimiza a força da expressão “todos quantos“ que aponta para os que são das “obras da lei” como um grupo específico, em contraste com os que são “da fé”, no v.9. Portanto, a referência em 3.10 não pode ser os judeus como um todo, mas aos que dentre eles confiavam numa observância legalista da lei como caminho para a vida.
Podemos ainda apelar para outro argumento, que fortalece interpretação tradicional. A citação de Paulo neste versículo (3.10) e de Deuteronômio 27.26. Paulo segue aqui a Septuaginta, que adiciona ao texto hebraico original “todo o homem” e “ todas” antes de “as coisas escritas no livro da lei”. Por que Paulo preferiu seguir a Septuaginta nessa citação e não o Texto Massorético? Provavelmente porque a Septuaginta, ao expandir o texto hebraico durante a tradução, dando-lhe uma ênfase mais universal e qualificando a lei como um conjunto de requerimentos, serve melhor o argumento do apóstolo a essa altura. A citação deliberada da Septuaginta, neste contexto, é mais uma indicação de que, para Paulo, “os que são das obras da lei” eram os que confiavam na obediência à lei de Moisés como o caminho para obter o favor divino.
Abordemos o assunto de outra perspectiva. Devido ao caráter polêmico da Epístola, Paulo sempre contrasta a expressão “obras da lei” com outras expressões, o que indiretamente nos fornece indicações do seu significado para o apóstolo. Em 2.16, por exemplo, Paulo duas vezes coloca “obras da lei” em paralelismo antitético com “fé em Cristo Jesus”. O sentido exato dessa frase tem sido amplamente debatido em vista da sua sintaxe ambígua. Trata-se de um genitivo subjetivo ou objetivo? A maioria dos exegetas tem optado por um genitivo objetivo, “fé em Jesus Cristo”. Entretanto, reconhecemos que mesmo a tradução “fé de Jesus Cristo” Não alteraria de forma significativa o argumento de Paulo, quando contrasta a expressão com “obras da lei”. A questão permanece a mesma: não é por praticar as obras requeridas pela lei que alguém é salvo, mas pela dependência em Deus, em Jesus Cristo como Salvador.
Tal contraste entre obras e fé, que também aparecem em outros escritos de Paulo (cf. Rm2.20,28; 3. 8,24; 4.5; 5.1; Ef 2.8-12; 3.2; Fp 3.9), em Gálatas faz parte do contraste maior que Paulo está fazendo entre as mensagens dos seus adversários e o evangelho genuíno que ele prega. Esse contraste é apresentado de várias formas: carne e Espírito (3. 2,5; 5.18-25), Agar e Sara (4.21-31), a aliança feita mediante Moisés e a promessa foi feita à Abraão (3.15-22). Em todos esses casos, temos a impressão de que Paulo está estabelecendo claramente a diferença fundamental entre as duas mensagens: a tentativa de merecer a absolvição divina pelo amontoar de méritos em contraste com a recepção simples dessa a absolvição mediante a fé em Cristo Jesus. Como parte desse contraste abrangente, as “obras da lei” são entendidas como uma execução legalista do requerimentos da lei de Moisés.
Outra expressão usada por Paulo em contraste com “obras da lei” é “ouvir com fé” (duas vezes em 3.1-5). Nessa passagem, Paulo argumenta com os gálatas, com base na experiência deles no passado e no presente, que a recepção do Espírito e a sua atuação poderosa entre eles decorriam não das “obras da lei”, mas do “ouvir com fé” (3. 2,5). A expressão também não é fácil de traduzir, porque mais uma vez temos um genitivo que pode ser tanto subjetivo quanto objetivo de duas palavras que podem comportar várias traduções diferentes (embora relacionadas), hakoé e Pístis. Entretanto, independentemente da tradução adotada, o argumento de Paulo permanece invariável. Em última análise, o contraste entre “obras da lei” e “ouvir com fé”, conforme Hays afirma, estabelece a ambos como alternativas mutuamente exclusivas, que destacam a diferença e a justaposição entre a atividade humana e a atividade divina.
Em 3.9-10, Paulo coloca “esqueçam das obras da lei” em correspondência antitética com os que são “Da fé”. Essa passagem pertence ao argumento final de Paulo, de que Abraão foi justificado pela fé e de que Deus prometeu abençoar todas as nações em sua descendência (3.6-8). Os que são ek písteos (v.9) são abençoados com o crente Abraão, ao passo que os que são ex ergon nomou são malditos pela lei. Se pudermos ler aqui o argumento de Paulo em 3.16-18, o contraste entre esses dois grupos torna-se mais claro. Os que são “da fé” são justificados como Abraão, sem as “obras da lei”. No caso de Abraão, a lei não havia sido dada ainda. O outro grupo, os das “obras da lei”, justificam-se pela lei de Moisés, que veio 430 anos após Abraão. O contraste é soteriológico. As “obras da lei” aqui, bem como em toda a carta, referem-se a obras realizadas em obediência à lei de Moisés com propósito meritório.
Praticar as “obras da lei” em 2.16 tem ainda um paralelo em 2.21, a “justiça mediante a lei”, que Paulo coloca em irreconciliável oposição aos efeitos da morte de Cristo. O contexto e a semelhança das duas expressões autorizam-nos a estabelecer o paralelo. O resultado é que praticar as “obras da lei”, por inferência, é incompatível com os propósitos da morte de Cristo. Para que a justaposição no versículo 21 entre a morte de Cristo e a justiça mediante a lei seja válida, é necessário que esta última seja entendida como atividade humana, padronizada pela lei, desde que a morte de Cristo, como Paulo geralmente indica, é resultado da iniciativa e da atividade de Deus com o objetivo de salvar pecadores (Gl 4.4-5; Ef 1.7-8; Cl 1.19-20; Rm 3.25-26).
Em conclusão, esperamos que nossa rápida pesquisa tenha demonstrado que o ataque de Paulo às “obras da lei” em Gálatas faz parte de sua polêmica mais geral contra o sistema legalista e inadequado do judaísmo palestino, como uma religião de méritos e em direta oposição ao evangelho da graça revelado em Cristo, conforme tradicionalmente se vem afirmando. Embora a ênfase de Dunn na função sociológica da lei nos desafie a ampliar nossa interpretação e incluir também este aspecto na polêmica de Paulo contra as “obras da lei” em Gálatas, sua tese fundamental, bem como muitas teses da “nova perspectiva” sobre o judaísmo e Paulo, não pode ser aceita senão debaixo de severas restrições e qualificações. Portanto, desde que não conseguimos ser convencidos por elas, resta-nos permanecer com a interpretação tradicional, que, mesmo parecendo antiquada e indefensável para muitos, continua refletindo mais exatamente a intenção de Paulo ao afirmar que a salvação é pela fé, sem as “obras da lei”.

Sobre Augustus Nicodemus: Natural da Paraíba, é pastor presbiteriano, teólogo calvinista e escritor. É considerado um dos grandes teólogos brasileiros de linha conservadora. É formado em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte, de Recife, mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul), doutor em Interpretação Bíblica pelo Seminário Teológico de Westminster (EUA), com estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). Foi professor e diretor do Seminário Presbiteriano do Norte (1985-1991), professor de exegese do Seminário José Manuel da Conceição (JMC) em São Paulo, professor de Novo Testamento do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (1995-2001), pastor da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife (1989-1991) e pastor da Igreja Evangélica Suíça de São Paulo (1995-2001). Atualmente é chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, em São Paulo, SP.

BONANI; …salvo e vivendo pela Graça!

Comentários

  1. O texto é bom, de fato. Mas, não tem haver com Teonomia e antinomismo. Tem haver com legalismo e anti-legalismo. Não é a teoria da "nova perspectiva" que defendo em minha teologia. Os teonomistas não aderem a "nova perspectiva", simplesmente seguem a própria teologia reformada.

    De seu conservo;
    Marcelo Lemos
    www.olharreformado.com

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